25/11/14

Reflectir Ganga, Um ano depois!



Marcolino Moco, antigo Primeiro Ministro
A desumanidade do Estado médio africano: o exemplo de Ganga"  
25 novembro 2014 

Caros irmãos mais novos, especialmente a juventude da CASA­CE e toda a juventude de Angola
Pediram-­me para que titulasse este tema com o epíteto “O Exemplo patriótico do jovem Ganga”. Eu preferi o presente título, menos sintético e “politizado”, porque na minha já longa vida tenho evoluído muito nas minhas concepções sobre o ser humano e as instituições. Assim se em adolescente já acreditei que era certa a ordem “salazarista” “Deus, Pátria e Família” e em jovem adulto, quando o mundo estava dividido em irreconciliáveis ideologias, pensava que o “meu partido” era o centro de Angola, estou a caminho de três décadas que acredito que devemos começar pelo ser humano, no qual, como afirma a filosofia banta, reside a própria entidade divina. Por isso antes de ligar Ganga a uma “pátria” que foi tomada por uma minúscula “etnia política”, mesmo dentro de um grande partido, prefiro ligar este jovem corajoso, à defesa da vida – apesar de a ter perdido – num combate que a cegueira política torna tão difícil, sem a mínima necessidade.

Se bem o reparam, este título encerra também um conteúdo pan­africanista. O comportamento dos homens de Estado que mataram o jovem Ganga, há um ano, em pleno exercício dos direitos que lhes plenamente lhe assistiam, por uma “constituição” nacional, embora centralmente revestida de aspectos inusitados, como os poderes extraordinários que confere a um inamovível Chefe de Estado e aos seus descendentes e outros familiares e amigos de ocasião, temos que começar a vê­lo no contexto africano. Embora não deixemos de notar que o caso de Angola já há muito começa a extravasar todos os extremos. Quando vi nas “jornadas parlamentares da CASA­CE do ano passado (para as quais fui convidado a palestrar como académico) representantes de partidos da oposição de Moçambique e Cabo Verde, sobreveio­me essa ideia de uma coordenação dos esforços de uma oposição pan­africana séria a regimes que mantêm o autoritarismo herdado dos poderes coloniais.

É evidente que foi apenas uma sugestão que me sobreveio, já que nem Moçambique, muito menos Cabo Verde podem ser, no meu ponto de vista, catalogados neste tipo de regimes. Refiro­me a regimes que, como o angolano, criam todos os mecanismos para não prestar contas a ninguém; outros mecanismos para abolir mecanismos que possam produzir algum tipo de alternância partidária, étnico­regional ou ao menos geracional (só dentro das próprias famílias), a não ser que sejam corridos por multidões enraivecidas, por tanto e continuado abuso do poder, como aconteceu há dias no Burkina Faso.

A morte de Ganga deve fazer­nos lembrar outros aspectos da luta pelo usufruto da independência nacional e da cidadania por todos os angolanos inseridos nos mais diversos sectores da vida nacional, seja sectorial, partidária, étnico­regional, género, etário, sem que isso se apresente de forma descarada ou disfarçada, como um favor ou termos que afinar por um mesmo diapasão as tonalidades das nossas peles, nossos sotaques e inclinações culturais. Se se tomasse a sério, por exemplo, a questão da reconciliação nacional (como acontece por exemplo na África do Sul) nunca mais ouviríamos, impunemente, e da boca de responsáveis políticos do regime, que Samakuva da UNITA não deveria dizer isso ou aquilo porque foi perdoado pelo “arquitecto da paz” ou que Chivukuvuku da CASA­CE está vivo graças ao mesmo extraordinário arquitecto. Isso devia ser reputado de muito grave.

Deve ser conhecido também que, perante minhas críticas – por vezes meras conclusões das ciências jurídico­políticas – diante de tanta excentricidade do regime do Senhor Presidente Santos, há quem queira que me cale, porque assim “cuspo no prato em que comi”. Gravíssima essa ideia, como se fôssemos para as funções públicas nacionais ou internacionais para as quais somos convidados ou assumimos por vontade própria para “comermos do prato de alguém”, DDT (dono disso tudo).

No outro dia, ao comparar o que se passou no Burquina Faso com o caso de Angola, apontava eu que não obstante nos virem levantar uma cortina de fumo, para nos dizerem que não há referências comparativas, a verdade é que Angola atravessa uma situação de abuso do poder muto mais grave (v. minhas páginas FB, dia 9/11 e www.marcolinomoc.com, dia 10/11). Em relação a isso, um suposto confrade meu do MPLA, que certamente não acompanha a minha trajetória apesar de muita coisa escrita e falada (não sabendo por exemplo que me encontro auto­suspenso de todas actividades e organizações do MPLA), disse­me que eu teria razão mas que deveria colocar “as questões nos lugares próprios”.

Isso significa que não obstante estarmos há doze anos de Paz e Democracia de armas caladas, há ainda compatriotas que pensam que o seu partido é o centro do mundo. Por mais que o regime por si sustentando, mate activistas políticos pacíficos como Ganga e outros e interrompa os seus funerais, igualmente pacíficos; tudo porque tentam organizar manifestações contra outras mortes inacreditáveis; regimes que alteram consensos e princípios constitucionais para prolongar mandatos, comandam tribunais para anular poderes parlamentos nacionais; não disfarçam sequer a protecção de pessoas conotadas com suspeitas de branqueamento de capitais dentro e fora de seus países; criando discricionariamente fundos soberanos geridos pelos próprios filhos a quem tornam “príncipes” e intocáveis multimilionários (em plenas repúblicas) e gestores de meios de comunicação do estado, monopolizando, por outro lado, os meios privados de comunicação; entre outras anomalias descaradas, que contam sempre com o apoio de elementos das antigas metrópoles coloniais, como este, o de afastar jornalistas que falam das verdades de Angola dos meios de comunicação portugueses. E disseram a esse militante do MPLA que tudo isso obedece a uma estratégia do partido, como teve a coragem de o confessar. Que estratégia de partido é essa que impede a formatação de uma estratégia nacional e se alimenta de jovens vidas humanas e duma “acumulação de capital” declarada para a família restrita e aliados de ocasião, tudo à vista de todos, com enormes empreendimentos puramente financeiros, fora do país?

Ganga e seus companheiros de luta dentro da CASA­CE e noutros sectores da sociedade angolana ainda vivos, porque escapados de um longo morticínio, mesmo depois de decretada a Paz definitiva e construção pacífica de uma Sociedade Democrática, deixam­nos a lição de que as instituições estão para defender a vida dos cidadãos e não para a destruir, para eternizar regimes, que não aceitam prestar contas sobre o seu desempenho. Ganga e companheiros, recordemos, pretendiam, pura e simplesmente, indagar sobre o desaparecimento anterior de outros jovens: Cassule e Kamulingue, em tempo de paz e democracia e no exercício dos seus direitos. Não há dúvidas que, por este preço tão alto, o conseguiram: hoje – simulacro ou não –fala­se, ao menos, de um



“julgamento dos assassinos de Kassule e Kamulingue” (não devendo ser por acaso que seja agora retomado por altura do aniversário da morte de Ganga). Porque, como temos referido, até mais no caso da corrupção, do nepotismo e da obstrução da competência comandados aberta e superiormente, em Angola, o problema não é que estas questões não existam noutras partes do mundo. O problema é que na Angola do regime “eduardista”, depois da guerra civil, estes fenômenos sobrevivem sem qualquer freio, subordinados todos os poderes (legislativo e judicial) a um chefe do Executivo que é intocável.

Com o exemplo de Ganga, o meu desejo é que todo o resto da juventude, independente das filiações ou não filiações partidárias, entenda que não haverá futuro tolerando silenciosamente ou sustentando, com o nosso cobarde comportamento, regimes autoritários, mesmo quando por interesses passageiros e devido a afabilidades diplomáticas, sejam inundados de elogios, por entidades estrangeiras, devido a falsas estabilidades. Costumo brincar que devido a minha idade e cansaços de “tanta luta e tanto luto”(M.Rui), já não posso juntar­me às correrias e torturas de jovens manifestantes, que apoio inteiramente porque estão mais do que no seu direito e sempre o fizeram dentro dos marcos legais.

No que me toca, no seguimento do exemplo de Ganga e na defesa da vida, continuarei a enviar a minha mensagem de paz àqueles que detêm o poder e parecem possuídos de tanto medo que agora que se deu o caso do Burkina Faso, sonham com fantasmas de tudo poder repetir­se em Angola, por “culpa da oposição”, quando esta há muito tem demonstrado que em Angola, depois de tanto sangue, podemos tentar outra via para transitarmos pacificamente do “eduardismo” para uma verdadeira sociedade pacífica e democrática, à medida de uma nova África, como eu próprio defendo no meu opúsculo “Angola: a terceira alternativa”, que não se trata de um programa político, mas de um método de negociação proposto a todos os actores políticos e à toda a sociedade civil.

Não podemos continuar aceitar que na África negra, em geral, e em Angola, em particular, a anormalidade seja considerada algo normal, como se pertencêssemos a uma espécie de raça inferior, anteontem dominada pelo colonialismo forasteiro e hoje por quem ontem se proclamou nosso libertador.

É esta a grande lição que Manuel Hilberto “Ganga” nos deixou, no fatídico dia 22 de Novembro de 2013. Que a aprendam os actuais detentores do poder e logo teremos uma Angola virada para a solução dos problemas mais prementes, sem medos, em paz e harmonia necessárias”.

Lisboa, 20 de Novembro de 2014.

Por intermédio do Club K
Autor: Marcolino Moco

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